segunda-feira, 18 de janeiro de 2010

A PARCIALMENTE INCONSTITUCIONAL LEI SECA


Lei Seca - TJ do Rio tranca Ação Penal contra motorista

Por Marina Ito

Para existir conduta típica e o motorista ser processado criminalmente, não basta que a denúncia diga que foram encontrados seis decigramas de álcool por litro de sangue no exame a que o condutor foi submetido em blitz. Os desembargadores da 8ª Câmara Criminal do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro entenderam que a denúncia tem de mostrar também que o motorista dirigia de forma anormal.“Admitir-se que o simples fato de conduzir veículo com concentração de álcool proibida no sangue representa perigo concreto, ou seja, caracteriza uma presunção absoluta de condução anormal do veículo, é atentar contra o princípio constitucional da ofensividade”, entendeu o desembargador Gilmar Augusto Teixeira, relator do caso no TJ, que concedeu Habeas Corpus para trancar a ação contra um motorista.

Em seu voto, o desembargador afirma que, para existir o crime, além da beber quantidade maior de álcool, o motorista precisa se comportar de forma anormal enquanto dirige o veículo. O desembargador citou o advogado criminalista Luiz Flavio Gomes, que entende ser necessário, no processo penal, provar que além de estar embriagado, o motorista levou perigo a outras pessoas, ainda que estas não sejam concretamente identificadas. Teixeira citou o Recurso Especial 608.078, julgado pelo Superior Tribunal de Justiça, em que os ministros entenderam que o crime previsto no artigo 306 da Lei 9.503/97 (modificada depois pela Lei 11.705/08, conhecida como Lei Seca) demandava a demonstração de potencial lesão.

“Apesar da modificação implementada no texto do artigo 306, do CTB, os elementos identificadores do referido crime não se alteraram, vale dizer, não houve alteração da estrutura normativa do tipo penal ou da sua constituição ontológica”, afirmou.

A Câmara interpretou a Lei 11.705/08 de modo a diferenciar as infrações administrativas das penais. “É forçoso concluir, com isso, que até o limite de 0,2 decigramas, o fato é atípico administrativa e penalmente. A partir daí, ou seja, entre 0,2 a 0,6 decigramas, haverá a infração administrativa. Igual ou mais que 0,6 decigramas, se o agente dirigir o veículo de forma anormal, colocando em risco a segurança viária, haverá tanto a infração administrativa quanto a penal.”

Para o desembargador Augusto Teixeira, se, mesmo com a concentração de álcool maior no sangue, o motorista conduz o veículo de forma normal, a infração é administrativa. “O Direito Administrativo, por admitir o perigo abstrato, não pode ser confundido com o Direito Penal, já agora com este constitucionalizado.”. Teixeira entende que o Ministério Público deveria ter apresentado uma denúncia em que fosse possível identificar que o motorista dirigiu de forma irregular, ainda que não tivesse colocado em risco a vida de alguém especificamente. “A peça exordial apenas afirma ter o paciente ingerido álcool e mais nada, o que constitui simples infração administrativa.” Ele votou no sentido de declarar inepta a denúncia, mas sem prejuízo de que outra seja apresentada.

A desembargadora Denise Bruyère Rolins acompanhou a decisão, mas quis ressalvar seu entendimento. Ela lembrou que as blitz que pretendem dar efetividade à chamada Lei Seca ocorrem, muitas vezes, com retenções no trânsito. “O momento da verificação da conduta não estará a coincidir com o prévio, em que o condutor estava efetivamente guiando e não trafegando em via de retenção”, afirmou. Para ela, sinais, como pessoa trôpega, com a língua enrolada, voz pastosa e ausência de coordenação motora, que demonstram incapacidade para a direção normal, deixam claro o perigo concreto.

No caso analisado pela Câmara, o motorista foi parado em uma blitz da chamada Lei Seca e submetido ao teste do bafômetro. Depois, foi denunciado pelo Ministério Público por dirigir embriagado. A Defensoria Pública, responsável por sua defesa, pediu Habeas Corpus depois que o juízo da 41ª Vara Criminal do Rio aceitou a denúncia. A Defensoria sustentou que o motorista estava sofrendo constrangimento ilegal, já que não obteve absolvição sumária no caso. Para a juíza Leila Santos Lopes, a concentração de álcool no sangue acima do previsto em lei configura fortes indícios de materialidade, suficiente para abrir a Ação Penal.

Lei contestada

Desde que entrou em vigor, em junho de 2008, a Lei 11.705/08, criada para punir com mais rigor motoristas que tenham consumido bebida alcoólica, tem sido contestada no Judiciário. Tribunais do país inteiro passaram a receber pedidos de Habeas Corpus preventivos para que os motoristas, ao serem parados em blitz, não fossem obrigados a fazer o teste do bafômetro. O próprio teste passou a ser contestado sob a alegação de que não se pode obrigar o motorista a produzir provas contra si.

Os HCs preventivos têm sido negados pelos tribunais. A maioria tem entendido que não cabe o Habeas Corpus já que não está em jogo a liberdade de locomoção. O Supremo Tribunal Federal e o Superior Tribunal de Justiça também já negaram recursos cujo objetivo é se livrar do teste do bafômetro pela alegação de que a obrigação ser inconstitucional.

No Supremo Tribunal Federal, a Associação Brasileira de Restaurantes e Empresas de Entretenimento (Abrasel) contestou alguns dispositivos da lei por meio da Ação Direta de Inconstitucionalidade 4.103. O relator da ADI é o ministro Eros Grau.

Clique aqui para ler a decisão do TJ.

domingo, 17 de janeiro de 2010

STJ paralisa Ação Penal contra a Camargo Corrêa


O Superior Tribunal de Justiça afastou das mãos do juiz Fausto de Sanctis mais um processo. Desta vez foi a Ação Penal contra executivos da construtora Camargo Corrêa, apelidada de Operação Castelo de Areia. Como nos casos anteriores, detectaram-se arbitrariedades, conclusões baseadas em suposições e provas ilícitas e elementos exotéricos como denúncias anônimas, ofícios e provas secretas. A decisão foi divulgada nesta quinta-feira (14/1).

O presidente do STJ, ministro Cesar Asfor Rocha, suspendeu provisoriamente — até que a 6ª Turma do tribunal examine o caso — "a Ação Penal e todas as iniciativas sancionatórias com base no Procedimento Criminal Diverso" instaurado a partir de delação anônima e secreta contra a empreiteira. A delação anônima, que é vedada pela Constituição para essa finalidade, foi usada por Sanctis “sem sequer uma mínima e prévia averiguação, a quebra de sigilo telefônico, ademais em decisão desfundamentada e genérica (alcançando todos os usuários de serviço de telefonia), tendo as escutas sido prorrogadas — também sem fundamentação — por período superior a 14 meses, já aí alcançando os pacientes”, segundo argumentou a defesa no pedido acatado por Asfor Rocha.

A decisão interrompe dois processos, dezenove inquéritos abertos pela Polícia Federal e as 32 representações encaminhadas pelo Ministério Público Federal a diversos órgãos solicitando informações e investigações.

No mesmo Habeas Corpus, Asfor Rocha criticou o Tribunal Regional Federal da 3ª Região por omitir-se e convalidar as práticas ilegais do juiz. A 2ª Turma do TRF-3 não só deixou de analisar os argumentos da defesa como aceitou “uma estranha e intempestiva comunicação secreta não apensada aos autos, constante de ofício reservado passado pelo juiz federal da 6ª Vara SJ/SP à relatora do feito mandamental no TRF, cuja existência só foi anunciada no instante do julgamento (e ainda assim só depois da sustentação oral formulada naquela ocasião), onde constaria a informação de que a deflagração referida estava alicerçada em denúncia anônima e apurações preliminares levadas a efeito pelo Departamento de Polícia Federal”.

Asfor Rocha esclarece que sua decisão, liminar, “não acarreta o trancamento da Ação Penal em apreço, não liberta pessoas detidas, não disponibiliza patrimônios constritor e não produz efeitos definitivos sobre o mérito da pretensão punitiva; porém, a sua continuidade e dos efeitos que derivam do mesmo PCD lavra contra os pacientes efeitos particularmente lesivos, por submetê-los a processo penal aparentemente eivado de insanáveis vícios, isso só já representando um constrangimento ilegal a que se deve pôr cobro de imediato, em atenção ao direito fundamental que tem toda pessoa de não sofrer ação punitiva sem a observância das suas garantias processuais”.

Para o ministro aposentado do Supremo Tribunal Federal Sepúlveda Pertence, "a chamada opinião pública vibra com esse tipo de atitude (as decisões de De Sanctis), mas é preciso reagir contra os abusos". Para o ministro, "esse moço tem uma vocação policial muito grande". Na fase em que se encontra o processo, ensina Pertence, "a intervenção do juiz é a de garantir o cumprimento da lei e não a de investigar".

Quando no Supremo, Pertence encabeçou a adoção do entendimento de que o ordenamento jurídico brasileiro não comporta investigação secreta e nem permite ao juiz o papel de investigador. Caso isso ocorra, decidiu o STF, o processo todo deve ser anulado.

Para o criminalista Alberto Zacharias Toron, a decisão de Asfor Rocha é “absolutamente correta" e "repõe as coisas nos seus devidos lugares, já que resgata algo fundamental: a observância do devido processo legal" nos julgamentos. As técnicas adotadas por De Sanctis, diz o advogado, "são práticas que já deveriam ter sido sepultadas". Afora o mais, diz ele, "a decisão do STJ mostra que o Brasil não pode conviver com métodos que representam o estado de polícia que já deveriam ter sido banidos do nosso cotidiano forense e da vida do país".

Para o advogado Celso Vilardi, que assinou o pedido de Habeas Corpus com seu colega Luciano Quintanilha de Almeida, a decisão de Asfor Rocha é importante porque "recoloca a Constituição Federal e a lei no comando das decisões judiciais". Embora destaque o caráter instável da decisão, ainda pendente de confirmação, Vilardi destaca que os procedimento adotados contra seus clientes "são absolutamente ilegais e contrariam os precedentes do STJ e do STF". A suspensão do processo, aponta, "é absolutamente prudente porque além de proteger os pacientes protege a credibilidade da Justiça, já que não é dado ao agente público constranger ou punir alguém com base em elementos acusatórios nulos".

Para um ministro do STF que não quis se identificar, De Sanctis se qualifica como "um lídimo corifeu do direito penal do inimigo: aquela escola que vê o acusado, o réu, como inimigo e assim o trata". Juízes que praticam o magistério punitivo, continua, "veem a justiça como vingança, não praticam a isenção nem o distanciamento em seu ofício, mostram os traços claros de Torquemada".

Essa visão vingativa na atividade judicante, continua o ministro, já foi condenada e chamada de "direito penal simbólico" por pretender o exemplo por meio da severidade da punição e da inclemência. O aprofundamento dessa noção chamou-se "direito penal do inimigo". A chama justiceira transparece ao longo da história em diversos momentos sob a etiqueta do "direito penal de autor" em que as pessoas não são condenadas pelo que fizeram, mas pelo que são: ora por ser negro, ora por ser judeu, ora por ser comunista, ora por ser pobre e agora por ser rico.

O cenário persecutório vivido hoje no Brasil já foi enfrentado nos Estados Unidos, com comoção semelhante. Lá também verificou-se divisão na sociedade com a reação conservadora aos avanços da Suprema Corte.

"Não deixa de ser curioso ver jovens juízes abraçarem com tanta aflição o modelo inquisitorial e se arrojarem contra a visão liberal do processo penal, que é resultado de séculos de debates e avanços no pensamento civilizatório", afirma o ministro. Nesse plano, o juiz De Sanctis coloca-se como um fundamentalista do Direito Penal Simbólico.

Para o julgador, é compreensível a fadiga com um modelo de impunidade calcado no abismo social da desigualdade, "mas não se pode corrigir a desigualdade e o desequilíbrio comprometendo os valores estratificados em torno de princípios básicos que protegem os direitos individuais do cidadão". Ou, em português claro: não se consegue corrigir injustiça contra um setor da população praticando injustiças contra outro.